9 de jul. de 2012
sobre morte e sobre chorar
É irônico como a morte, possivelmente o evento mais triste que pode se abater sobre determinado grupo de pessoas - uma família - minha família -, acaba se tornando por vezes também uma das poucas ocasiões de encontro dessa família. Primos e tios que uma vez decerto costumavam se ver toda semana, reunir-se nos aniversários, no natal, e que agora se encontram nos velórios. Os filhos crescem, vai cada um pra um lado, a vida toma seu rumo. E ali estavam esses primos do meu pai e do meu tio, esses tios e tias, pessoas que eu conheço de nome e de vista mas não muito mais do que isso e algumas das quais passaram a noite ao redor de um caixão, lembrando histórias, revelando detalhes até então desconhecidos dessas mesmas histórias. Meus dois avôs já morreram. E quando eles morreram eu não senti. Eu vi pessoas à minha volta visivelmente abaladas e me forcei a sentir aquilo também, uma lágrima que fosse, mas pouco ou nada aconteceu. No caso de um deles, foi só um ano depois. Meio tarde. Mas com a minha vó, mãe do meu pai, eu sabia que os finais de semana da minha infância, quase todos passados na casa dela, os jogos de carta, as brincadeiras e tudo mais que fosse não deixariam passar sem efeito. Eu saía do trabalho quando fiquei sabendo, depois de retornar uma ligação de casa em horário incomum. Eu chorei sentada nas escadas do sétimo andar da reitoria da UFRGS. Eu chorei no caminho até em casa, a chuva caindo e eu só queria chegar. Eu chorei no sofá, depois de parar de andar da sala pro quarto e do quarto pra sala sem saber o que fazer ou o que fazer primeiro. Eu chorei na rodoviária esperando o ônibus. Eu chorei no ônibus. Eu chorei na capela, depois que meu pai me acompanhou até o lado do caixão e eu não consegui olhar pro rosto sem vida da minha vó. Eu chorei em casa, naquela noite, e na manhã seguinte, quando fecharam o caixão e foi no ombro do meu tio que eu encontrei um lugar pra esconder o meu rosto. Eu chorei no banheiro, depois de ter entrado no quarto dela e visto todas as coisas - roupas, colares, perfumes, objetos - menos quem deveria estar ali. Ainda sinto meus olhos marejarem, de vez em quando, quando penso. E então eu tento não pensar. Tem um quê de morbidez em mexer nas coisas de uma pessoa com esse objetivo, de fazer uma triagem - o que guardar, o que dar, o que jogar fora. Eu e meu tio passamos o fim da tarde e a noite de sábado abrindo gaveta por gaveta, armário por armário. Encontramos as balas do revólver do meu vô. Dele também uma faquinha de uns dez centímetros, pouco mais, um canivete e uma caixa de moedas antigas, uma delas com quase duzentos anos. Queimamos cera de depilação, amostras velhas de creme e dezenas de papeizinhos. Vasculhamos caixas e caixas de colares, brincos e bijuterias antigas. Numa delas, eu encontrei o colar que ele, meu tio, havia feito pra ela quando ainda estava na escola, com uns oito anos, de missangas e papel enrolado. Cartões meus e do meu irmão. Bilhetinhos. Toda sorte de objetos – pingentes, correntinhas, pedras, livros do novo testamento. Remexemos em tudo, vimos fotos, lembramos histórias, rimos de várias delas, choramos ou nos emocionamos com outras, ao sabor de pinhão batido na chapa. Voltei pra casa com uma herança bem maior do que as pulseiras de ouro que eu já tinha ganhado nos meus 15 anos. Ela recortou as páginas das matérias que eu escrevi no JU. Não sabemos onde ela guardou. É estranho pensar em como todos esses objetos acumulados ao longo da vida deixam de fazer sentido quando a gente morre. Coisas que minha vó guardava com alguma intenção e que agora foram transformadas em lembranças materiais para quem ficou. E o resto - sabe lá. E ninguém sabe. Ninguém que passa por mim na rua pode perceber - eu perdi alguém. Eu perdi alguém que me amava e que eu amava também. A vida segue, outra vez, desgraçada como sempre.
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