30 de out. de 2012
cartas
Lembro vagamente as últimas vezes em que escrevi e recebi uma carta. Pelo correio, com selo, escrita à mão e tudo mais que uma carta que se preze precisa ter. Eu e uma amiga, filha de uma amiga da minha mãe, a certa altura resolvemos nos corresponder por cartas. Ainda que fosse mais velha, ela aparentemente não via problema nem absurdo na situação e encontrava tempo para escrever cartas para uma criança sem muito mais o que fazer na época. E ela fazia coisas incríveis: usava papéis coloridos de todos os tipos, fazia desenhos, usava o próprio papel da carta dobrado de jeitos diferentes que eu amava como envelope, botava perfume e um ps pra que eu cheirasse a folha e por aí vai. Não foi à toa que a moça se tornou publicitária. E eu - eu não sou nada, só continuo escrevendo. Como já escrevia naquela época e sempre achei mais fácil expressar qualquer coisa por meio de palavras escritas. Quando um parente - tio, tia, vô, vó, algum primo - fazia aniversário, minha mãe provavelmente não passou longe de fazer ameaças ou chantagens para que eu ligasse. Telefone sempre me apavorou. No final do terceiro ano, foi por e-mail que eu resolvi dizer ao colega que anos antes havia sido meu primeiro namorado que ele era, afinal, uma pessoa de quem eu inevitavelmente sempre me lembraria e a quem eu desejava toda a felicidade que fosse possível. Ele respondeu o e-mail de um jeito lindamente amável e entre todo o resto chamou a atenção para o fato de que era eu que me dava bem com as palavras escritas, ele preferiria me dizer tudo aquilo pessoalmente. Não sei há quantos anos eu não uso o correio para nada. Quero dizer, há quantos anos eu não uso, porque as contas seguem chegando sem erro mês a mês. Pensar em cartas hoje soa anacrônico, como pensar em lavar as roupas no tanque porque antigamente não existiam máquinas de lavar. Por que enviar uma carta quando se pode enviar um e-mail ou jogar mais uma mensagem no facebook da pessoa? Mesmo os e-mails, quando não referentes a trabalho, faculdade, newsletter de qualquer coisa, parecem ter sido substancialmente abandonados. Quase como se escrever um e-mail com a única finalidade contar algo a alguém fosse uma interpelação, uma invasão, uma perturbação do tempo e da caixa de entrada alheia. Uma pressão de resposta que o outro não quer sofrer. As pessoas estão todas variavelmente conectadas umas às outras em redes sociais, podem falar e dividir o que sentirem vontade quando sentirem vontade e com quem sentirem vontade, mas, em maior ou menor medida, deixam de conversar. De gastar talvez uma hora para realmente dizer algo a alguém. Mas é claro que isso é uma generalização tosca que, além de tosca, pode estar completamente distorcida. É mais ainda uma impressão. Baseada em nada mais do que observação breve. O fato é que quando recebo um e-mail, um e-mail que não seja referente a trabalho, faculdade ou newsletter de qualquer coisa, eu me alegro como com poucas coisas na vida. Dependendo do caso, meu coração acelera nos segundos que passam antes de eu abrir para ler, numa mistura deliciosa de expectativa, curiosidade e vontade que pode ser decepcionada ou satisfeita mas não importa. Necessidade de contato e diálogo com o outro a que todo ser humano está fadado e que se manifesta diariamente mesmo em mim, que sou capaz de ficar dias inteiros sem pronunciar nada. Dever ser por isso que às vezes deixo a consciência de lado e escrevo para quem a bem da verdade eu não tenho mais nada a dizer. Porque isso é uma mentira: sempre vão existir coisas a serem ditas. A quem esteja interessado em ouvir e a quem não esteja. As palavras são veneno e antídoto.
2 de out. de 2012
de um tempo que não acabou mas já passou
Hoje não vale nada. Como também já não valia naquele tempo. As manhãs intermináveis carregadas das mesmas discussões de tanto tempo atrás - papo furado, que se não anda em círculos tampouco chega a qualquer lugar. Conversas que dão ânsia de fuga no mais determinado de nós. E como são figuras tristes os nossos colegas determinados - não pela determinação, mas pelo emprego dela no infrutífero, em algo que, mais cedo ou mais tarde, perceberão, não vale o esforço. Eu acordo e vou para esse espaço em que paira uma atmosfera de superficialidade. O fenômeno dos lugares onde todos se conhecem sem conhecer quase ninguém. Não que não existam sentimentos entre os mais próximos, não que não haja amizades verdadeiras, mas sobra a interação com o resto - essa massa sempre estranha e alienada que nos rodeia.
Quanto a mim, eu nunca fui dos mais próximos, nunca criei com ninguém laços que fossem além do coleguismo. Não por falta de vontade. Nem mesmo por não gostar das pessoas. Muitos deles sempre foram e seguem sendo objetos do meu respeito, da minha consideração e do meu afeto. Não formei vínculos por culpa, é possível, da minha personalidade, que eu nunca consegui mudar. A aproximação com as pessoas é difícil para mim desde que consigo me lembrar de existir. Timidez, insegurança, receio, solidão, silêncio; um amontoado de variáveis em que já não é possível definir o que é causa e o que é consequência. O fato é que sou hoje, essencialmente, o que fui sempre: solitária, de sensibilidade exposta e vulnerável, de indiferença clara, perdida e fechada em melancolia e oscilações de fé na vida. A tristeza mediana de uma das histórias do livro do Paul Auster.
Tenho a impressão de que falta tempo e nada recebe a devida atenção, o empenho mínimo e necessário. Ou talvez eu não saiba, ainda, administrá-lo, porque não importa o quanto eu leia: sempre falta. E não importa o quanto eu escreva: é pouco ou não me satisfaz. Quando não os dois. Como produzir qualquer coisa digna e que valha a pena quando se faz tanto que não sobra concentração ou ânimo para fazer melhor? Pior: quando não se encontra nem um motivo para fazer melhor. Não sei exatamente de onde veio a ideia de que fazer menos é preguiça, "coisa de vagabundo". É seguindo essa linha fazemos sete cadeiras por semestre, não aprendemos nada direito em nenhuma e terminamos acreditando que fizemos uma grande coisa - sou foda, passei com A em todas. É seguindo essa linha que se faz tudo sem fazer nada. E o resultado disso é o futuro que eu vejo: pessoas - profissionais - capazes de fazer mil coisas ao mesmo tempo se for preciso, mas incapazes de fazer uma só - bem feita. É desolador pensar que talvez não haja mais nada para mim lá além da possibilidade, ainda que distante, de um dia terminar.
Perdi meu sentimento de pertença, partindo do pressuposto de que algum dia ele existiu concretamente e não apenas como uma presença em momentos esparsos. Esgotei minha energia de tentar ser como todos parecem ser, de tentar ser lembrada e reconhecida como igual. Depois de três anos de tolerância obediente, cansei, enfim, de ser diária e semestralmente julgada por quem a bem da verdade não sabe mais que o meu nome. E em tantas vezes nem isso. Gente igual a mim. Para algumas pessoas, diferentes das outras, na maioria das vezes é preciso tirar força e vontade sabe-se lá de onde só para viver. Quando há entrega demais, quando se sofre demais - por coisas grandes ou pequenas -, quando se sente demais.
Quanto a mim, eu nunca fui dos mais próximos, nunca criei com ninguém laços que fossem além do coleguismo. Não por falta de vontade. Nem mesmo por não gostar das pessoas. Muitos deles sempre foram e seguem sendo objetos do meu respeito, da minha consideração e do meu afeto. Não formei vínculos por culpa, é possível, da minha personalidade, que eu nunca consegui mudar. A aproximação com as pessoas é difícil para mim desde que consigo me lembrar de existir. Timidez, insegurança, receio, solidão, silêncio; um amontoado de variáveis em que já não é possível definir o que é causa e o que é consequência. O fato é que sou hoje, essencialmente, o que fui sempre: solitária, de sensibilidade exposta e vulnerável, de indiferença clara, perdida e fechada em melancolia e oscilações de fé na vida. A tristeza mediana de uma das histórias do livro do Paul Auster.
Tenho a impressão de que falta tempo e nada recebe a devida atenção, o empenho mínimo e necessário. Ou talvez eu não saiba, ainda, administrá-lo, porque não importa o quanto eu leia: sempre falta. E não importa o quanto eu escreva: é pouco ou não me satisfaz. Quando não os dois. Como produzir qualquer coisa digna e que valha a pena quando se faz tanto que não sobra concentração ou ânimo para fazer melhor? Pior: quando não se encontra nem um motivo para fazer melhor. Não sei exatamente de onde veio a ideia de que fazer menos é preguiça, "coisa de vagabundo". É seguindo essa linha fazemos sete cadeiras por semestre, não aprendemos nada direito em nenhuma e terminamos acreditando que fizemos uma grande coisa - sou foda, passei com A em todas. É seguindo essa linha que se faz tudo sem fazer nada. E o resultado disso é o futuro que eu vejo: pessoas - profissionais - capazes de fazer mil coisas ao mesmo tempo se for preciso, mas incapazes de fazer uma só - bem feita. É desolador pensar que talvez não haja mais nada para mim lá além da possibilidade, ainda que distante, de um dia terminar.
Perdi meu sentimento de pertença, partindo do pressuposto de que algum dia ele existiu concretamente e não apenas como uma presença em momentos esparsos. Esgotei minha energia de tentar ser como todos parecem ser, de tentar ser lembrada e reconhecida como igual. Depois de três anos de tolerância obediente, cansei, enfim, de ser diária e semestralmente julgada por quem a bem da verdade não sabe mais que o meu nome. E em tantas vezes nem isso. Gente igual a mim. Para algumas pessoas, diferentes das outras, na maioria das vezes é preciso tirar força e vontade sabe-se lá de onde só para viver. Quando há entrega demais, quando se sofre demais - por coisas grandes ou pequenas -, quando se sente demais.
9 de jul. de 2012
sobre morte e sobre chorar
É irônico como a morte, possivelmente o evento mais triste que pode se abater sobre determinado grupo de pessoas - uma família - minha família -, acaba se tornando por vezes também uma das poucas ocasiões de encontro dessa família. Primos e tios que uma vez decerto costumavam se ver toda semana, reunir-se nos aniversários, no natal, e que agora se encontram nos velórios. Os filhos crescem, vai cada um pra um lado, a vida toma seu rumo. E ali estavam esses primos do meu pai e do meu tio, esses tios e tias, pessoas que eu conheço de nome e de vista mas não muito mais do que isso e algumas das quais passaram a noite ao redor de um caixão, lembrando histórias, revelando detalhes até então desconhecidos dessas mesmas histórias. Meus dois avôs já morreram. E quando eles morreram eu não senti. Eu vi pessoas à minha volta visivelmente abaladas e me forcei a sentir aquilo também, uma lágrima que fosse, mas pouco ou nada aconteceu. No caso de um deles, foi só um ano depois. Meio tarde. Mas com a minha vó, mãe do meu pai, eu sabia que os finais de semana da minha infância, quase todos passados na casa dela, os jogos de carta, as brincadeiras e tudo mais que fosse não deixariam passar sem efeito. Eu saía do trabalho quando fiquei sabendo, depois de retornar uma ligação de casa em horário incomum. Eu chorei sentada nas escadas do sétimo andar da reitoria da UFRGS. Eu chorei no caminho até em casa, a chuva caindo e eu só queria chegar. Eu chorei no sofá, depois de parar de andar da sala pro quarto e do quarto pra sala sem saber o que fazer ou o que fazer primeiro. Eu chorei na rodoviária esperando o ônibus. Eu chorei no ônibus. Eu chorei na capela, depois que meu pai me acompanhou até o lado do caixão e eu não consegui olhar pro rosto sem vida da minha vó. Eu chorei em casa, naquela noite, e na manhã seguinte, quando fecharam o caixão e foi no ombro do meu tio que eu encontrei um lugar pra esconder o meu rosto. Eu chorei no banheiro, depois de ter entrado no quarto dela e visto todas as coisas - roupas, colares, perfumes, objetos - menos quem deveria estar ali. Ainda sinto meus olhos marejarem, de vez em quando, quando penso. E então eu tento não pensar. Tem um quê de morbidez em mexer nas coisas de uma pessoa com esse objetivo, de fazer uma triagem - o que guardar, o que dar, o que jogar fora. Eu e meu tio passamos o fim da tarde e a noite de sábado abrindo gaveta por gaveta, armário por armário. Encontramos as balas do revólver do meu vô. Dele também uma faquinha de uns dez centímetros, pouco mais, um canivete e uma caixa de moedas antigas, uma delas com quase duzentos anos. Queimamos cera de depilação, amostras velhas de creme e dezenas de papeizinhos. Vasculhamos caixas e caixas de colares, brincos e bijuterias antigas. Numa delas, eu encontrei o colar que ele, meu tio, havia feito pra ela quando ainda estava na escola, com uns oito anos, de missangas e papel enrolado. Cartões meus e do meu irmão. Bilhetinhos. Toda sorte de objetos – pingentes, correntinhas, pedras, livros do novo testamento. Remexemos em tudo, vimos fotos, lembramos histórias, rimos de várias delas, choramos ou nos emocionamos com outras, ao sabor de pinhão batido na chapa. Voltei pra casa com uma herança bem maior do que as pulseiras de ouro que eu já tinha ganhado nos meus 15 anos. Ela recortou as páginas das matérias que eu escrevi no JU. Não sabemos onde ela guardou. É estranho pensar em como todos esses objetos acumulados ao longo da vida deixam de fazer sentido quando a gente morre. Coisas que minha vó guardava com alguma intenção e que agora foram transformadas em lembranças materiais para quem ficou. E o resto - sabe lá. E ninguém sabe. Ninguém que passa por mim na rua pode perceber - eu perdi alguém. Eu perdi alguém que me amava e que eu amava também. A vida segue, outra vez, desgraçada como sempre.
5 de jul. de 2012
3 de jul. de 2012
rip
Quando se abre um blog e não vem nada à cabeça,
quando se abre um blog e se tem preguiça,
quando se abre um blog e postar nele parece ter perdido o sentido,
quando se abre um blog e o interesse não vem,
quando se abre um blog e escrever nele exige esforço,
quando se abre um blog, escreve-se nele com esforço e o resultado é um lixo,
quando tudo isso acontece, percebe-se claramente que esse blog morreu.
quando se abre um blog e se tem preguiça,
quando se abre um blog e postar nele parece ter perdido o sentido,
quando se abre um blog e o interesse não vem,
quando se abre um blog e escrever nele exige esforço,
quando se abre um blog, escreve-se nele com esforço e o resultado é um lixo,
quando tudo isso acontece, percebe-se claramente que esse blog morreu.
24 de jun. de 2012
"There's just this pressure I feel to be, well, 'on', you know? Like it's just so much effort. And then when I am there and 'on', I have this sick compulsion to play this stupid game humans always play when they're hanging out together - this game where one person tells a story about how great he is, and then the next person somehow finds a connected story that tells how equally great, or greater, she is. The game goes on and on like that the full eighthour workday. And as much as I try to just be like everyone else, I always end up leaving feeling hollowed out, fucking gutted - like I need a drink - like I must be some entirely different species from the rest of humanity."
"There are a lot of times when I still hate everything - you know, most of all myself. And in those moments, well, using can seem like an all right idea. But, fuck, man, the thing is, those moments are only moments. I've been through 'em enough times to know that they will pass. [...] So what I do is, man, I hide out in bed. I watch a movie. I lie on the floor with little Quimby and pet him and cry and wait. 'Cause it passes. A day goes by, or two, or a whole fucking week, but then it's over and I can see the truth again. The truth is: It's a beautiful life. I've just got to hold on, is all. I've gotta hold on. 'Cause it will be all right. And we keep moving forward like that. No matter how many times we stumble. No matter how many times we all fall down."
14 de jun. de 2012
27 de mai. de 2012
Assinar:
Postagens (Atom)